Cruz Alta, o berço de um escritor.
Juliana Abreu
“Ninguém pode
falar de ninguém sem contar uma história. Nenhuma figura humana pode ser
estudada em termos literários num vácuo, pois ela pertence a um tempo e a um
espaço, tem um passado, vive um presente. É também um contínuo devir, um
processo transitivo e não um produto acabado.” (Erico Verissimo in ALEV - Acervo Literário Erico
Verissimo, 03e07-74)".
Foi
aqui na cidade do interior do RS, Cruz Alta, que um menino de dedos magros,
constituição singela, transformou a robustez da mente em um passaporte para o
sucesso. O caminho: contar sonhos, escrever e viver de literatura, o desejo que
teve coragem de ir buscar.
Erico
com certeza foi o romancista que despontou para o significado de viver de
literatura no Brasil, e o fez. Embora no
início não tenha sido fácil conciliar carreira, família e o trabalho na Editora
O Globo na capital gaúcha com seus projetos pessoais.
Ainda
muito antes, na cidade de Cruz Alta, sua mente já o levara para este mundo: o
talento inegável para narrar histórias, criar mundos ficcionais, observar “as
gentes”, os lugares, a cidade, fez com que sua sensibilidade o tornasse um dos
maiores romancistas de sua época, senão o maior romancista urbano do século XX.
Sua imaginação lhe surpreendia a qualquer momento e seus dedos obedeciam, fato
que ele mesmo narra na seguinte passagem:
“Foi na máquina
de escrever Underwood desse armazém que alimentava os soldados do 6º Regimento
de Artilharia Montada e do 8º de Infantaria, que fiz às escondidas a minha
primeira literatura. Que livros ficaram ligados a essa época um tanto opaca de
minha vida? Lembro-me principalmente de Os Sertões, de Euclides da
Cunha, cujo estilo me fascinava com sua força máscula, a sua irregularidade, os
seus imprevistos, os seus períodos de aço.” (VERISSIMO, Um certo Henrique
Bertaso, 2011, p.19).
Foi
ainda atrás do balcão da Pharmácia Central na Rua do Comércio em Cruz Alta, que
escreve seus primeiros contos com intento de serem publicados, sem paciência e
muito menos talento para a profissão de farmacêutico, desvia sua atenção
totalmente para o mundo dos seus escritos, custando assim a falência do
estabelecimento, para o bem da literatura.
Dividido
entre seu talento e a botica, tem receio de expor seus escritos, fazendo-o com
cautela aos mais chegados. É por insistência do jornalista e amigo Prado Junior
que envia seu conto “Chico” para o periódico Cruz Alta em Revista, Ano I, nº 2 ano 1929, página 19, sendo este
seu primeiro conto publicado oficialmente no interior.
Conforme
Erico Veríssimo narra em seu livro (Idem, 2011, p. 22) Manoelito de Ornellas
ressuscita o esquecido conto “ladrão de Gado” que jazia no fundo de uma gaveta
e o envia bem recomendado a recém fundada Revista do Globo de Mansueto
Bernardi, que o publicará. Ainda por esta indicação Erico publica em outro
número do mesmo periódico: “A tragédia de um Homem Gordo”.
Ao
sentir-se mais confiante em relação à aceitação de seus escritos, resultado das
publicações, encaminha diretamente ao periódico Correio do Povo (1929) outro conto seu intitulado “A Lâmpada
Mágica”, que foi aceito por Souza Junior.
Tempos mais tarde já amigo do chefe do
suplemento Literário do referido jornal descobrira que ele ao receber o conto
em suas mãos, não lera, apenas viu o nome do autor, achou sugestivo e mandou
para impressão, sem ler. (Solo de Clarineta Volume I, 1997, p. 221).
Depois
da persistente resistência da Pharmácia Central em sobreviver com toda sua má
administração durante quatro anos, tendo sido inaugurada em 1927, o laboratório
social que esta propiciou ao escritor foi comparado ao seu tempo elevado ao
quadrado, dado a suas peculiaridades, em suas palavras:
“Eu vivia em
três mundos, pelo menos. O primeiro era o da realidade cotidiana; a rotina
fisiológica, o ritual burguês, os avisos de bancos (um bombachudo, para variar,
me encostou um dia o cano do revólver no peito porque eu não lhe quis dar a
crédito um vidro de xarope contra tosse). O outro era o mundo dos livros das
personagens de ficção que me levaram para outros tempos e outras geografias. O
terceiro mundo era o da minha própria fantasia: as estórias que eu escrevia e
mandava quase semanalmente para o Correio
do Povo, que as publicava em seu Suplemento Literário.” (VERÍSSIMO, Um
certo Henrique Bertaso, 2011, p. 24).
Erico
de vez em quando aventurava-se em viagem para a capital já que o financeiro não
lhe propiciava ir a São Paulo ou Buenos Aires. Na capital nunca deixava de
visitar a livraria do Globo, era destino certo, alimentava seus olhos quase
tanto quanto seus ouvidos nessa que não era uma mera Casa de Livros,
“Subia
até o ilustre território de Mansueto Bernardi, onde ficava folheando e
namorando livros franceses que, muito caros, não eram para meu bico. Com o rabo
dos olhos observava o ambiente, na esperança de que se encontrassem ali alguns
dos escritores gaúchos de renome que eu costumava ler em livros ou nas páginas
do Correio do Povo e do Diário de Notícias. O sujeito magro, sardento,
anguloso, levemente encurvado, a pele transparente como de porcelana, cabelos
de ruibarbo, ar de intelectual europeu, olhos azuis, nariz e lábios afilados-
ah! Esse só podia ser Augusto Meyer, poeta ensaísta, por quem eu tinha uma
ilimitada admiração...Agora quem entrava, muito bem vestido, bengala pendendo
de um dos braços, bigode aparado, era um moço com ar de galã de opereta
italiana- Ernani Fornari, o autor de Trem
da Serra. (Mal sabia eu que dali a alguns anos ele iria se tornar um de
meus melhores e mais leais amigos).” (Idem, 2011, p. 23).
E
este era o universo dos sonhos para um aspirante a escritor como Erico almejava
ser, mas como essas viagens eram apenas escapadas da cidade do interior, a
rotina o aguardava, o imaginário o aguardava.
Erico
chega a corresponder-se com Mansueto Bernardi na esperança de ser publicado, a
essa altura já havia contos suficientes para publicar um volume reunindo-os.
Seus contos são bons certamente, mas ainda não possui um nome conhecido, e para
a época, para garantir o sucesso de vendagem era necessário ser conhecido do
público, talvez mais tarde, não seria hora da editora correr o risco.
Mas
nem mesmo a negativa de Bernardi o dissuadira de seu caminho, encarando sua
realidade e suas ambições de frente, o moço, teve de lidar com a falência da
farmácia, com a pressão do sogro, com o mundo real gritando em mais alto tom
sobre o fantasioso. A decisão lhe pareceu sensata: ir para a capital, a fria e
obscura Porto Alegre, que já não lhe tinha sido favorável anteriormente.
“O “velho” Volpe
deu-me um crédito de confiança emprestando-me sua máquina de escrever portátil,
já que eu pretendia continuar fazendo literatura, talvez um dia como profissão.
(tenho uma lerda teimosia, herdada talvez dum avô tropeiro que costumava levar
tropas de mulas de Cruz Alta a Encarnación, Paraguai).” (Idem, 2011, p. 25).
Muda-se para Porto alegre em 1930, em busca de
novas perspectivas de vida. Após mais de duas semanas na capital Erico é
contratado pela Revista do Globo para o cargo de secretário, onde não demorou
muito para ser nomeado Diretor da revista.
É
bem verdade que o autor confessava que não tinha conhecimentos mínimos no
início de como funcionava uma redação de um quinzenário e seu coração não se
apaziguara muito com o passar do tempo. O dia da admissão foi retratado em diálogo
entre Mansueto Bernardi e Erico Veríssimo:
“Olhou-me com
seus olhos venezianos e, depois de algum
tempo, murmurou:
- Você escreve,
traduz, desenha... Seria o homem ideal para tomar conta da Revista do Globo no futuro.
- Por que no
futuro – repliquei-, se estou precisando dum emprego agora?
...
- Pois então
está contratado. Pode começar no dia primeiro de janeiro. Entende de “cozinha”
de revista?
- Claro- menti.
Na realidade, nunca havia entrado numa tipografia. Não conhecia nem de vista
uma linotipo. Não tinha idéia de como fazia um clichê ou se amarrava uma
página. Mas o importante mesmo é que tinha conseguido um emprego!
Foi assim que
entrei para a Família Globo.” (Idem, 2011,
p. 26-27).
Mas
tal qual sua paixão pelas letras, pelas histórias e pelas pessoas, ele e
Henrique Bertaso fizeram da incipiente Editora O Globo que estava nascendo, de
um projeto adendo a Livraria do Globo, uma das mais importantes do país. E é
Bertaso que vai publicar o primeiro Livro de Erico, Fantoches, por conta da editora, por acreditar no
potencial do escritor. Mas esse já é assunto para outro momento.